STF perpetua privilégios e contribui para a crise fiscal

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 14/12/2020.

 

Em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal, na Praça dos Três Poderes, repousa a escultura “A Justiça”, de Alfredo Ceschiatti. “Repousa”, aliás, é uma boa palavra para descrever o estado da obra do artista belo-horizontino: afinal, são raras as representações artísticas em que a deusa da Justiça está sentada. Mas este não é seu único detalhe simbólico.

Através dos séculos, a deusa romana Iustitia aparece em pinturas e esculturas com três componentes praticamente inseparáveis: a venda nos olhos (destacando a impessoalidade), a balança (fazendo referência à isonomia no tratamento das partes) e a espada (realçando a força para impor o direito sobre todos).

A escultura que simboliza o Judiciário brasileiro, porém, não possui balança – como se por lá não fosse necessário contrabalancear argumentos, sopesar direitos, medir consequências e equilibrar a teoria e a prática.

Há quem justifique a falta do instrumento afirmando que a nossa Justiça foi retratada após ter exercido o seu dever; logo, a balança já teria sido usada, e uma vez proferida a decisão, bastaria ter no colo a espada, para ser utilizada caso não a cumprissem. Ora, então não seria melhor que a Justiça estivesse como a deusa grega Thêmis, de olhos bem abertos para fiscalizar a aplicação de seus mandamentos?

 

Ceschiatti, um dos artistas recomendados por Oscar Niemeyer para ornamentar a nova capital, esculpiu “A Justiça” em 1961 num bloco monolítico de granito de 3,3m de altura e com linhas elegantes e econômicas – características que bastante tempo passam longe do STF, rachado entre várias correntes e fomentando a irresponsabilidade fiscal.

Duas decisões recentes expõem como os ministros do Supremo Tribunal Federal fecham os olhos para a grave crise econômica pela qual o país atravessa, deixam de equilibrar direitos e deveres e embainham a espada quando se trata de cortar os privilégios da própria magistratura.

Em 01/12 a ministra Rosa Weber deferiu uma liminar determinando que a União deveria avalizar a um empréstimo de mais de US$ 400 milhões para investimentos do governo do Estado do Espírito Santo. Essa operação havia sido travada pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que veda a concessão de garantias federais caso entes subnacionais estejam descumprindo os limites prudenciais de gastos com pessoal. No caso do Espírito Santo, era justamente o Poder Judiciário local quem estava gastando além da conta.

Alegando violação ao princípio da intranscendência – em outras palavras, um poder não poderia ser punido por uma falha de outro – a ministra Rosa Weber esvaziou a LRF, acrescentou mais um ônus ao sobrecarregado Tesouro Nacional e não impôs qualquer sanção ao Judiciário capixaba por inflar sua folha de pagamentos. Decisões como essa, aliás, são bastante frequentes nas últimas décadas, e podem ser apontadas como uma das causas para a baixa efetividade da LRF e pelo descontrole orçamentário na maioria dos Estados e municípios.

Pior ainda fez o Plenário do STF na semana passada – não, eu não me refiro à decisão sobre a reeleição nas presidências da Câmara e do Senado. Com a exceção solitária do ministro Edson Fachin, que votou contra, a maioria dos ministros considerou inconstitucional parte das Emendas Constitucionais nº 41/2003 e 47/2005 que estabelecia que os juízes estaduais deveriam ter seus vencimentos limitados a 90,25% do que ganham os integrantes do STF.

Novamente, o STF se valeu de princípios abstratos – no caso, da isonomia e da unidade da prestação judicial – para atropelar normas criadas para manter as contas públicas em dia e evitar distorções. E assim, juízes de todo o país, até mesmo os recém aprovados em concurso, estão definitivamente liberados a ganhar o mesmo que um membro da Suprema Corte. E é bom não esquecer que certamente a decisão terá efeito cascata sobre o Ministério Público e os Tribunais de Contas Brasil afora.

Essa última decisão tomada pelo STF partiu de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) movidas, respectivamente, pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages).

A Constituição Brasileira de 1988 se tornou uma das mais progressistas do mundo ao permitir que não apenas entidades políticas (como os chefes do Executivo, do Legislativo e do Ministério Público, além dos partidos políticos), mas até mesmo confederações sindicais e entidades de classe pudessem provocar o STF para, enquanto guardião da interpretação constitucional, se posicionar se uma lei, em abstrato, fere ou não a Carta Magna do país.

Como acontece com frequência por aqui, avanços logo se transformam em abusos. Ao permitir que entidades privadas tivessem acesso privilegiado às ações mais importantes de nosso sistema processual, o controle abstrato das normas se tornou fonte concreta de benesses. Não é à toa que, desde 1988, a AMB figura como o grupo privado que mais acionou o Supremo para questionar a constitucionalidade de leis – foram 151 vezes, boa parte delas relativa à defesa dos interesses de seus associados. A Anamages, por sua vez, propôs outras 45 ADIs.

No porto de Ringkøbing, uma cidade com menos de 10 mil almas no centro da Dinamarca, encontra-se a escultura de um homem esquálido carregando nos ombros uma mulher bastante obesa. A mulher tem os olhos fechados e carrega nas mãos uma balança desequilibrada – desnecessário dizer a quem ela faz alusão.

Feita em bronze, com 3,5m de altura, “Sobrevivência do mais Gordo” (Survival of the Fattest) é uma obra dos artistas dinamarqueses Jens Galschiøt e Lars Calmar, inaugurada em 2002. Na sua base, há a seguinte inscrição: “Estou sentada nas costas de um homem. Ele está afundando sob o fardo. Eu faria qualquer coisa para ajudá-lo. Menos descer de suas costas”.

Nada mais exemplificativo sobre o Poder Judiciário brasileiro e a atuação de sua cúpula.