Já se tornou chavão comparar o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), com o personagem Francis Underwood, da série da Netflix House of Cards. O próprio deputado brasileiro, quando perguntado a respeito pelo jornal Valor Econômico, saiu-se com essa: “Eu vi essa série. Existem três diferenças clássicas, ali: o cara é um assassino, o cara é um corrupto e o cara ainda é um homossexual. Não dá para eu aceitar essa comparação. É ofensiva”.

Apesar da discordância “pontual” do presidente da Câmara, é fato que o seu estilo na condução das sessões e votações parlamentares tem suscitado comparações com a sede de poder e o comportamento pragmático e maquiavélico do fictício político que galga altos patamares na política norte-americana.

A esse respeito, a TV Câmara acabou de transmitir mais um grande ato do estilo Eduardo Underwood Cunha de ser. Em pauta, na Ordem do Dia, estava a votação de um tópico da tão desejada e nunca efetivada Reforma Política. Aliás, um tópico nevrálgico para a democracia brasileira: o financiamento de campanhas eleitorais.

Para compreendê-lo melhor, é preciso recuar um pouco no tempo para dar uma dimensão de todo o contexto em que ele se insere. Como venho demonstrando neste blog, as doações de campanha provenientes de empresas vêm crescendo em ritmo acelerado eleição após eleição (aqui), com fortes evidências de que estão correlacionadas com favores por parte dos governantes e parlamentares depois de eleitos (aqui).

Ciente dessa situação, a Ordem dos Advogados do Brasil propôs em 2011 uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal argumentando que a doação de empresas representaria abuso de poder econômico e, portanto, agrediria o espírito da Constituição Federal (veja mais aqui).

O STF realizou então uma audiência pública com especialistas sobre o assunto (aqui ) e, pressionado pelas manifestações de rua de junho de 2013, iniciou a votação em dezembro de 2013. Até o momento, votaram pela vedação às doações de empresas os ministros Luiz Fux (relator), Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Joaquim Barbosa (aposentado), Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski. O único voto a favor das contribuições privadas foi do ministro Teori Zavascki (veja aqui).

No entanto, desde 02/04/2014 a tramitação da ação encontra-se parada em função de um pedido de vistas do ministro Gilmar Mendes. E aí entra em cena o festejado e odiado Francis Underwood brasileiro.

A longa demora do ministro Gilmar Mendes em votar a ação no STF permitiu que os interessados nas doações privadas se mobilizassem. O raciocínio desse grupo, no qual se incluiria o presidente da Câmara Eduardo Cunha, é bem simples: antes que o STF julgue que as doações privadas são inconstitucionais, vamos colocar na Constituição um dispositivo dizendo que elas são constitucionais!!!! Brilhante, não?

E é isto que está acontecendo nas votações de ontem e hoje na Câmara. No âmbito do projeto de reforma política arquitetado por nosso Francis Underwood brasileiro, a Proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 182/2007 (sua tramitação está aqui) foi proposta uma emenda tornando constitucionais as doações de pessoas jurídicas. Tratava-se da Emenda Aglutinativa nº 22, de autoria do deputado Sérgio Souza (PMDB/PR), que acrescentava um parágrafo ao art. 17 da Constituição Federal: veja.

Essa emenda foi levada a votação na madrugada de ontem, e num aparente cochilo do presidente da Câmara (com licença para o jogo de palavras), foi derrubada! Ou seja: os deputados decidiram rejeitar a proposta de tornar constitucionais as doações de empresas para candidatos e partidos. O placar foi de 264 votos a favor das doações privadas (eram necessários 308), 207 contrários e 4 abstenções.

A decisão de impedir a constitucionalização das doações privadas foi comemorada pelo governo (o PT é a favor do financiamento exclusivamente público nas campanhas) e considerada pela imprensa como uma derrotada de Eduardo Underwood Cunha (veja aqui um exemplo da repercussão).

Mas hoje Eduardo Cunha demonstrou que tem mesmo poderes de Francis Underwood para manobrar votações e alcançar os seus objetivos de poder.

Utilizando-se de uma manobra regimental que não passou desapercebida por seus opositores (a polêmica está bem explicada nesta reportagem do site da Câmara), Eduardo Cunha colocou em votação uma nova Emenda Aglutinativa, desta vez a de nº 28, de autoria do Deputado Celso Russomano (PRB/SP), que torna constitucionais as doações de empresas apenas para partidos (e não mais para os candidatos, como acontece hoje).

Numa votação conturbada, onde Eduardo Underwood Cunha foi acusado de manobrar os tempos dos pronunciamentos dos parlamentares para permitir o arrebanhamento de deputados que não estavam no Plenário para votar a favor da proposta, finalmente a Emenda foi a votação e a mudança foi aprovada por 330 votos a favor (eram necessários 308), 141 contrários e uma abstenção. O Francis Underwood brasileiro deu um importante passo para tornar constitucionais as doações de empresas para campanhas eleitorais no Brasil.

É preciso destacar que esta decisão ainda não é definitiva, uma vez que depende de nova votação na Câmara dos Deputados, e mais toda a tramitação no Senado para só então entrar em vigor (para proteger nossa Constituição de mudanças oportunistas, são necessários 3/5 dos votos dos parlamentares em duas votações na Câmara e no Senado para alterar a Carta Magna).

Nem tudo está partido para aqueles, como eu, que consideram que as doações de empresas desequilibram o jogo democrático em favor dos que detêm mais recursos. Porém… ai, porém… A vitória de Eduardo Cunha e seus pares favoráveis às doações privadas têm grandes consequências, a saber:

  • Com essa vitória parcial na Câmara, torna-se bastante improvável que o ministro Gilmar Mendes, que já engavetou o processo da OAB no STF por mais de um ano, decida colocá-lo em votação justo no momento em que o Congresso debate a matéria;
  • Se a PEC que torna constitucionais as doações de pessoas jurídicas for realmente aprovada, certamente os outros ministros do STF vão mudar o seu voto, pois não decidirão contra a vontade daqueles que – queiramos ou não – nos representam;
  • O teor da Emenda aprovada hoje na Câmara piora, a meu ver, a situação atual: se hoje podemos saber quem doou para cada candidato, na nova proposta as doações serão feitas aos partidos, que terão o poder de decidir para quem distribuir o dinheiro. Ou seja, o processo ficará menos transparente e mais difícil, para o cidadão, de acompanhar se o parlamentar ou governante está colocando os interesses de seus doadores acima do interesse público.

Como a Câmara ainda não divulgou oficialmente a lista de quem votou a favor e contra da Emenda no dia de hoje, deixarei para amanhã uma análise sobre a influência das doações privadas nas votações da reforma política.

Por enquanto, fica o lamento por esta vitória do Francis Underwood brasileiro.



 

 


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