Crises fiscais e inflação assombram o país há 200 anos

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 05/09/2022.

 

Esqueça o brado retumbante de um povo heroico ouvido pelas margens plácidas do Ipiranga, cantado no Hino Nacional. Há duzentos anos, quando rompemos os laços de submissão que nos prendiam a Portugal, o grito “ou ficar a Pátria Livre ou morrer pelo Brasil”, mencionado no Hino da Independência, foi apenas uma frase de efeito. Na verdade, “o Brasil nasceu de uma crise fiscal. Seu pai foi o déficit; sua mãe, a inflação”.

A frase, provocadora, sintetiza as conclusões de uma pesquisa profunda e um texto muito bem escrito conduzidos pelo jornalista Rafael Cariello e pelo economista Thales Zamberlan Pereira. “Adeus, senhor Portugal: crise do absolutismo e a Independência do Brasil”, que será lançado hoje em São Paulo, mais do que acrescentar uma robusta tese para explicar as circunstâncias de nossa Independência, utiliza a economia para conectar as circunstâncias do passado com os desafios do presente.

Desde que Dom João VI e a família Real se instalaram no Rio de Janeiro em 1808, após fugirem da invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão Bonaparte, sobriedade e contenção não eram virtudes cultivadas por aqui.

Os gastos palacianos eram absurdos. Entre 1808 e 1821, quando o monarca retorna a Lisboa, as despesas destinadas à manutenção da família Real e seu séquito de cortesãos giravam entre 20% e 29% do total de dinheiro o que o Estado português aplicava no Brasil.

Além dos empregados, festas, banquetes e a manutenção de vários palácios, havia ainda a distribuição de privilégios: junto com os títulos de viscondes, barões e comendadores, seguia-se uma farta distribuição de ajudas de custos, pensões, rendas, monopólios, exclusividades e outras benesses arcadas pelo Tesouro Real.

Para piorar a situação, o Reino se digladiava em duas frentes. Em Portugal, o Exército estava envolvido em batalhas e escaramuças para expulsar as tropas napoleônicas invasoras. Na América, mobilizava tropas para conquistar a província Cisplatina, atual Uruguai, e assim garantir o acesso à estratégica foz do rio da Prata. Essas guerras tinham um preço alto e crescente – entre 1808 e 1820, os gastos militares, somente no Brasil, aumentaram duas vezes e meia em termos reais.

Para arcar com as pesadas despesas com a guerra e com a Corte, recorreu-se à elevação dos tributos sobre nossas commodities. Açúcar e algodão, produzidos principalmente nas províncias da Bahia, Pernambuco e Maranhão, viviam um boom nos mercados internacionais com a Revolução Industrial.

O aumento da carga tributária, porém, não foi suficiente. Para cobrir os déficits, o governo passou a recorrer ao Banco do Brasil. Fundado em 1808, o BB se tornou o principal credor do Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves. Os autores levantaram dados que revelam que, nos últimos anos da Corte joanina no país, 34% da receita do reino vinha de empréstimos bancários.

Como principal acionista do Banco do Brasil, o governo também colocou as máquinas de impressão de cédulas e moedas para girar mais rápido. O montante de papel-moeda em circulação quadruplicou entre 1814 e 1820. E a emissão descontrolada de moeda logo resultou em inflação. Nas contas de Cariello e Zamberlan Pereira, os dois principais itens da cesta básica da população, farinha de mandioca e carne-seca, dobraram e triplicaram de preço, respectivamente, entre 1815 e 1830.

A cuidadosa pesquisa feita pelos autores também demonstra que a inflação também corroeu os salários da emergente classe média urbana do Rio de Janeiro e Salvador. Profissões de maior qualificação naquele tempo, como carpinteiros e pedreiros, tiveram seus rendimentos reais corroídos pelo aumento geral de preços ocorrido no período.

A carestia penalizava não apenas trabalhadores e consumidores, mas também as elites: os grandes proprietários de terra passaram a ter que arcar com valores cada vez mais altos para alimentar e manter seus estoques de negros escravizados.

Quando o Banco do Brasil ficou à beira da falência, o governo começou a atrasar os pagamentos dos soldos do Exército. Com o povo, militares e elites insatisfeitos com a situação econômica, o colapso que começou no campo fiscal e contaminou o lado monetário, disseminando a inflação, ganhou contornos políticos. A Independência se tornou insustentável.

Crises fiscais e crises políticas andaram juntas ao longo da história brasileira desde então. Para ficar apenas nas últimas décadas, o golpe militar de 1964 e a queda da ditadura em 1985, bem como os impeachments de Collor e de Dilma, em todas essas inflexões de nossa história estão presentes descontrole fiscal, inflação e convulsão política.

Dom Pedro I assumiu o trono do novo país e não foi capaz de oferecer soluções para os problemas daquela época: o descontrole nas contas públicas, as relações conflituosas entre a Corte e suas províncias, o inchaço do funcionalismo público, o sistema tributário disfuncional e a maior das nossas aberrações: a escravidão.

Substitua “Corte” por “União”, “províncias” por “Estados e municípios” e, principalmente, “escravidão” por “desigualdade social” e, transcorridos dois séculos, está tudo aqui ainda.

Se o modelo de Estado adotado no Brasil após a Independência, segundo Cariello e Pereira, poderia ser descrito como uma “monarquia constitucional oligárquica”, pois apenas uma pequena fração da sociedade brasileira estava representada no Congresso, mantendo uma sociedade profundamente desigual, não seria exagero dizer que, pelas mesmas razões, nós vivemos hoje numa “República constitucional oligárquica”.

Caso o coração de Dom Pedro I falasse, talvez ele teria um recado a dar aos atuais dois líderes na disputa pela Presidência da República.

A Jair Bolsonaro, ele diria que ações autoritárias, como a dissolução da Assembleia Constituinte – o Congresso da época – em vez de resolver a crise, apenas postergou em alguns anos a necessidade de sair fugido do Brasil.

Para Lula, o recado estaria na economia: depois do oba-oba da consagração como líder da nação, se não houver coragem para enfrentar os graves problemas fiscais do país, a popularidade se esvai em poucos meses.