Pior que a memória seletiva é a saudade de tempos não vividos

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 04/11/2019.

 

Em 1974, as rádios AM e FM do país só tocavam Feelings, balada romântica do cantor Morris Albert. Incluída na trilha sonora da novela “Corrida do Ouro”, vendeu mais de 300 mil cópias – uma fábula para o Brasil da época. No ano seguinte o sucesso chegou aos Estados Unidos: 32 semanas seguidas entre as “100 mais” da Billboard, fechando 1975 como a 45ª mais executada do ano nas rádios americanas, à frente de “You are so Beautiful” (Joe Cocker), “Killer Queen” (Queen) e “Junior’s Farm” (Paul McCartney).

O que pouca gente sabe é que Morris Albert, na verdade, é o nome artístico de Maurício Alberto Kaiserman, compositor brasileiro que ficou rico cantando em inglês. “Feelings” abriu as portas do mundo para ele, que emplacou outras canções em filmes, seriados e comerciais em dezenas de países. Foram mais de 160 milhões de discos vendidos na carreira, o que garantiu ao cantor uma confortável aposentadoria na Itália. Na década de 1980, porém, a justiça americana entendeu que “Feelings” era um plágio da canção francesa Pour Toi, composta por Lolou Gasté em 1957 – e Morris Albert teve que pagar uma indenização milionária pelos direitos autorais devidos.

A memória seletiva é uma das características mais marcantes do ser humano. Noites mal dormidas tornam-se meros detalhes quando, muitos anos depois, contemplamos as fotos de nossos filhos bebês; os tempos da escola ou da faculdade viram “a melhor fase das nossas vidas” nos reencontros de 25 ou 50 anos de formados.

Quando “Feelings” estourou nas paradas brasileiras, o Brasil ainda vivia a euforia dos tempos do milagre. A economia tinha crescido mais de 10% ao ano desde 1968, havíamos conquistado a taça Jules Rimet nos gramados do México e o governo lançava e inaugurava obras monumentais como a Ponte Rio-Niterói e a rodovia Transamazônica. Quando um bolsonarista tece loas ao governo militar, é a esse período que ele faz referência. Entre 1968 e 1973, tudo parecia dar certo para o Brasil.

Para quem viveu o período, ouvir “Feelings” hoje em dia pode dar a sensação de que aqueles eram os verdadeiros bons tempos, um período de ordem e progresso, de Brasil Grande. Mas, como a canção de Morris Albert, nosso sucesso era fake. O milagre tinha sido turbinado por um crescimento internacional sem precedentes que impulsionava nossas exportações e por financiamento externo extremamente barato para os investimentos de nossas estatais.

Com o primeiro choque de preços do petróleo, no final de 1973, a maré virou. Os desajustes gerados durante os governos Costa e Silva e Médici e a resposta do governo Geisel de manter a economia crescendo a qualquer custo nos levaram à hiperinflação, à recessão dos anos 1980 e à dívida externa que tornou o Brasil um pária no mercado internacional por muitos anos à frente. A ilusão do crescimento de dois dígitos no período militar nos legou sobretudo o agravamento de nossa desigualdade social, mal que nos aflige até hoje.

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL – SP), em audiência pública na Câmara em 10/04/2019. Foto: Vinicius Loures/Câmara dos Deputados

Pior do que a memória seletiva de quem minimiza os maus momentos em favor das boas recordações é a saudade de um tempo não vivido. O deputado Eduardo Bolsonaro nasceu nos estertores do regime militar e defende o AI-5 como remédio para a manutenção da ordem no país. Além do desrespeito por aqueles que foram calados, torturados e mortos pela face mais sombria do regime militar, Zero Três mostra total descaso com os valores democráticos e a Constituição que ele prometeu defender quando tomou posse.

Em 1974, quando “Feelings” embalava namoros em todo o país, o regime militar sofreu a sua maior derrota política até então. O partido da oposição, MDB, venceu 15 das 21 cadeiras em disputa para o cargo de senador (quatro anos antes, haviam sido apenas 3 em 42) e elegeu 165 num total de 364 deputados. A população brasileira emitia sinais claros para os generais que governavam o país: a liberdade é mais valiosa que a ordem e os frutos do crescimento econômico precisavam ser melhor distribuídos entre a sociedade.

Os resultados eleitorais de 1974 ensinaram a uma parcela das Forças Armadas que, dez anos após a tomada do poder, o regime tinha perdido o apoio popular. Comandadas por Ernesto Geisel, iniciaram a distensão “lenta, gradual e segura” para a volta da democracia.

Ao enaltecer e ameaçar se valer daquilo que o regime militar teve de pior – a censura e os métodos de violência do AI-5 –, os Bolsonaro mostram desconhecer que o regime perdeu legitimidade justamente ao tolher as liberdades dos cidadãos e ao não oferecer ao conjunto da população os frutos de um crescimento econômico sustentável e equilibrado.

As polêmicas produzidas pela família presidencial nas últimas semanas deixam evidentes seu despreparo e sua falta de visão. 2020 se aproxima e com ele uma eleição municipal que testará a força do bolsonarismo. O cenário internacional aponta muitas incertezas que podem minar nossa ainda incipiente recuperação econômica e a péssima articulação política do governo lança dúvidas sobre o futuro das reformas a serem apresentadas pelo ministro Paulo Guedes, ao mesmo tempo em que nebulosas relações com crimes e corrupção pairam sobre o Palácio do Planalto e seu condomínio na Barra da Tijuca.

Enquanto as ruas da América Latina se enchem em protestos contra governantes que, à esquerda e à direita, não oferecem respostas aos anseios de mudança, o presidente e seus filhos ameaçam com um flashback de práticas nefastas de nossa história. Em dez meses, acuado por críticas e envolto em crises autoproduzidas, Bolsonaro pode estar perdendo a sustentação de parte importante do eleitorado que o levou ao poder. Sem projetos para o futuro, testa os limites das instituições. Meu sentimento é que torcem para ver o circo pegar fogo – “feelings, nothing more than feelings”.