Regra criada por Cunha e Maia embaralha o jogo para 2022

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 29/03/2021.

 

Pode parecer sandice, mas de certa forma o destino do governo Bolsonaro e até mesmo das eleições de 2022 poderá ser decidido graças a uma parceria entre Eduardo Cunha e Rodrigo Maia firmada seis anos atrás.

Mais regulares e previsíveis do que os movimentos dos planetas ao redor do sol, as reformas eleitorais no Brasil acontecem religiosamente a cada ano ímpar. Isso se deve ao princípio da anterioridade, inscrito no art. 16 da Constituição, que estabelece que as regras do jogo devem ser estabelecidas um ano antes da ocorrência dos pleitos.

Criado para dar previsibilidade à disputa, esse dispositivo constitucional acaba gerando o efeito contrário: de dois em dois anos há uma corrida contra o tempo no Congresso para se alterarem as leis conforme os interesses daqueles que tentarão um novo mandato dali a doze meses. E em 2021 não será diferente.

Num de seus primeiros atos como presidente da Câmara, Arthur Lira (PP/PB) constituiu um grupo de trabalho formado por 15 deputados, sob o comando de Margarete Coelho (PP/PI), para rediscutir temas como distritão, volta das coligações e cláusula de barreira. Como essas mudanças sempre são empurradas para a undécima hora – visando reduzir o espaço para o debate público de ideias que são, quase sempre, muito ruins para a competitividade do sistema político – certamente trataremos delas em colunas futuras.

Antes disso, voltemos a 2015, quando o país pegava fogo em meio ao estelionato eleitoral de Dilma, pautas-bombas no Congresso e notícias diárias da Lava Jato abalando as estruturas de Brasília. Ocupando a presidência da Câmara, Eduardo Cunha exercia com maestria seu papel de Francis Underwood brasileiro. Tal qual o personagem principal de House of Cards, a série da Netflix que fazia sucesso à época, Cunha conduzia o Plenário manobrando todas as brechas dos regimentos não apenas para levar Dilma e o PT às cordas, como também para acumular influência e poder.

Àquela altura, a pressão da Força Tarefa de Curitiba já ameaçava o status quo da política brasileira, a ponto de animar o Supremo Tribunal Federal a ressuscitar um processo que há muito jazia nos escaninhos do ministro Luiz Fux: um pedido do Conselho Federal da OAB para declarar inconstitucionais as doações de campanhas feitas por empresas.

Com seu faro único para as viradas dos ventos na política, Cunha tratou de usar a reforma eleitoral daquele ano em favor do seu grupo. Primeiro mais do que dobrou o valor do fundo partidário (de R$ 313 milhões para R$ 811 milhões) e em seguida propôs encurtar significativamente tanto a duração da disputa quanto o tempo de propaganda no rádio e na TV. No discurso tudo era vendido como medidas necessárias para tornar as campanhas mais baratas e diminuir a dependência do capital empresarial, mas na verdade o objetivo foi aumentar o poder dos políticos que já estavam lá.

Quem comandou as negociações para a aprovação das novas normas eleitorais em 2015 foi Rodrigo Maia (DEM/RJ), nomeado por Cunha para ser o presidente da comissão especial de reforma política. Maia chamou para si a responsabilidade de redigir um substitutivo muito mais abrangente que a proposta inicial e também o parecer do relator, deputado Paes Landim (PTB-PI).

Rodrigo Maia e Eduardo Cunha em reunião da CPMI da Petrobrás em 23/07/2014. Foto: Luis Macedo / Câmara dos Deputados

 

Entre as muitas mudanças arquitetadas pela dupla Cunha-Maia estava a postergação do limite para filiação e trocas partidárias. Segundo a legislação em vigor até então, toda pessoa que almejasse concorrer às eleições seguintes deveria se filiar a uma legenda com no mínimo um ano de antecedência. Com a aprovação da nova Lei nº 13.165/2015, esse prazo foi alterado para apenas seis meses antes das eleições, criando-se ainda uma janela para que os parlamentares em mandato trocassem de siglas sem incorrerem em infidelidade partidária.

Não há nos anais daquela tramitação legislativa nenhuma justificativa de Rodrigo Maia para essas alterações, mas nas duas janelas seguintes já foi possível identificar seus efeitos e quem se deu bem com as novas regras. Logo em 2016 noventa deputados mudaram de time, e em 2018 foram outros 85 – ou seja, o troca-troca gira em torno de 20% da Câmara a cada eleição. No cômputo geral, PT e PSDB, que dominaram a cena política brasileira nas últimas três décadas, foram bastante prejudicados. Entre os grandes vencedores, estiveram DEM, PP e PL – algumas das agremiações preferidas dos parlamentares do Centrão.

Para o político de baixa densidade ideológica, quanto mais tarde ele tiver que decidir com qual legenda deverá concorrer nas próximas eleições, melhor. Ao adiar o prazo de filiação partidária de outubro para março, a reforma de 2015 favoreceu o comportamento oportunista do Centrão, que agora tem seis meses a mais para escolher qual canoa tem mais chances de chegar ao outro lado do rio.

Por melhor que fosse sua intuição política, é óbvio que Eduardo Cunha e tampouco Rodrigo Maia poderiam imaginar que sua manobra há seis anos poderia embaralhar as cartas do jogo político no biênio 2021-2022.

Como os seus liderados têm ainda um ano para resolverem se mudam de partido para as eleições de 2022, é provável que Arthur Lira (PP/PI) continuará acendendo somente sinais amarelos para Bolsonaro, num morde-e-assopra conveniente que deixa portas abertas com o governo e também com a oposição.

O adiamento da filiação partidária para março do ano que vem também beneficia Lula, que não precisa ter pressa nem para forçar uma decisão dos demais partidos de esquerda, e tampouco para costurar alianças com o Centrão nos Estados.

Por fim, a medida é péssima para os entusiastas da construção de uma alternativa entre bolsonaristas e lulistas. Com o deadline mais distante, maior deve ser a demora para se definir a chapa – e enquanto isso tanto os agentes políticos quanto o eleitorado vão sendo atraídos pelos dois polos opostos.

Se o tal “centro” deixar para escalar seu time apenas em março de 2022, já entrará em campo derrotado.