Como em tudo o mais, 2020 será imprevisível eleitoralmente

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 24/08/2020.

 

Em 2018 eu passei boa parte da campanha eleitoral argumentando que o fim das doações empresariais e a criação do fundão eleitoral iriam beneficiar os grandes partidos e seus caciques regionais, levando a uma baixa renovação do Congresso. Abertas as urnas, saí com uma lição e um alento. O aprendizado foi que cada eleição tem a sua dinâmica própria, e não é recomendável fazer prognósticos olhando pelo retrovisor. Se algo me serviu de consolo, foi que o oráculo de analistas e cientistas políticos muito mais experientes e gabaritados falhou igualmente – embora não faltem por aí profetas do acontecido que, diante do resultado das urnas, tascam sempre o famoso “eu já sabia”.

Reza a lenda entre políticos e cientistas sociais que as eleições municipais são uma prévia dos pleitos estaduais e federal que ocorrerão dois anos depois. A explicação faz sentido: realizadas no meio dos mandatos do presidente, governadores e congressistas, as escolhas de prefeitos e vereadores funcionam como uma grande pesquisa nacional sobre o desempenho dos mandatários atuais, além de se prestar à construção de plataformas de apoios e articulações locais que serão de grande valia logo à frente.

A partir da próxima segunda-feira (31/08), partidos em todo o país começam a fazer as suas convenções para a escolha dos candidatos. Trata-se do primeiro movimento oficial de um jogo que tem muito a revelar sobre as alavancas e engrenagens da política brasileira atual, com componentes pessoais, institucionais e conjunturais.

Não é que meu palpite para 2018 estivesse totalmente errado. Muitos “donos” de partidos, bem como seus filhos, filhas e esposas conseguiram se eleger. O problema foi a confluência de duas forças que apareceram com potência máxima naquele ano e levaram a uma renovação maior do que eu previa: a indignação popular contra políticos tradicionais, que cobrou seu preço de figurões envolvidos nas investigações da Lava Jato, e o efeito Bolsonaro, em cuja onda se elegeram dezenas de candidatos novatos e desconhecidos.

Neste ano saberemos a quantas anda o poder desses dois fatores. O efeito midiático das investigações de corrupção, que foi determinante para o desempenho ruim dos maiores partidos da Nova República (MDB, PSDB e PT) em 2018, perdeu muito do seu ímpeto. Por outro lado, o bolsonarismo chega a seu primeiro pleito municipal sem partido – o Aliança pelo Brasil não conseguiu obter as assinaturas necessárias para o seu registro – e sem o elemento surpresa que tanto o ajudou dois anos atrás.

E por falar em Bolsonaro, interessa saber como as redes de transmissão em massa de mensagens pelas redes sociais vão atuar em nível municipal, principalmente depois das ações judiciais e das medidas internas promovidas pelas gigantes de tecnologia sob o pretexto de conter a disseminação de fake news.

Outra incógnita diz respeito à conjuntura econômica e social nestes tempos de covid-19. Em que medida a gestão da crise de saúde por parte do presidente, governadores e prefeitos afetará os resultados das urnas? E de que forma os efeitos econômicos gerados pela política de distanciamento social, o alívio dado pelo auxílio-emergencial e as centenas de milhares de mortes vão se relacionar na decisão de voto do eleitor?

Ainda sobre o coronavírus, as eleições deste ano também lançam dúvidas sobre a eficácia das velhas táticas de campanha. Mesmo com a flexibilização gradativa das medidas de isolamento, sem vacina uma parcela considerável da população ainda não se sente segura a aglomerar. Isso afeta bastante o corpo-a-corpo com eleitores, marcado por comícios, reuniões e visitas. Fazer campanha em tempos de covid será um interessante experimento social.

 

E já que o assunto é estratégia, não podemos perder de vista o poder de dinheiro nas eleições. Graças ao fundão eleitoral, os campeões de voto em 2018 ficarão com a maior parcela do bolo de R$ 2 bilhões a ser distribuído pelo Tribunal Superior Eleitoral: PT e PSL, cada qual com R$ 200 milhões, estarão bem à frente de MDB (R$ 150 mi), PP e PSD (R$ 140 mi cada), PSDB (R$ 130 mi) e DEM (R$ 120 mi) – para ficar só nos principais agraciados. Transformar dinheiro em votos é a maior missão desses partidos.

Com relação às outras fontes de recursos, temos uma certeza e duas dúvidas. Graças a uma mudança nas regras de financiamento, candidatos somente poderão custear 10% de seus gastos com recursos próprios. Resta saber se isso será suficiente para conter o poderio de candidatos ricos na hora do voto. Aliás, a crise econômica vai limitar o volume de doações de pessoas físicas, de pequenos doadores que doam por vaquinhas virtuais a grandes aportes feitos pelos bilionários donos das maiores empresas brasileiras?

Do ponto de vista institucional, a disputa deste ano traz também uma outra inovação. A proibição de coligações entre partidos para os cargos legislativos deve levar a um número recorde de candidatos a prefeitos e vereadores, causando uma pulverização que tornará a escolha ainda mais difícil para os eleitores.

Por fim, as eleições municipais deste ano serão importantes para aferirmos se haverá crescimento nas urnas de duas forças não partidárias que vêm ganhando importância nos últimos anos e assumiram um importante protagonismo durante o governo Bolsonaro: os “partidos” evangélico e militar. Com ideologia clara, formação de quadros, penetração em diversas legendas e presença disseminada por todo o território nacional, esses dois grupos têm todas as condições para ampliar sua representatividade na política brasileira.

Como não poderia deixar de ser, 2020 será um ano imprevisível também em termos eleitorais. É totalmente incerto como esse conjunto de fatores irá definir o futuro da política brasileira em 2020 e além. Mas eu já aprendi a lição: em eleições, não faço mais previsões.