Fim das coligações não altera natureza química dos partidos

Por Bruno Carazza. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 28/09/2020.

 

O homem começou a desenvolver a habilidade de lidar com metais para produzir ferramentas e objetos na fase final da pré-História, por volta do ano 5.000 a.C. Depois das idades da pedra lascada (paleolítico) e da pedra polida (neolítico), nossa escalada evolutiva passou a ser designada pelos materiais metálicos com os quais aprendemos a trabalhar para facilitar nossa vida: do cobre para o bronze, chegando finalmente ao ferro, fomos nos tornando cada vez mais capazes de extraí-los, fundi-los e manuseá-los.

Na tabela periódica, de um total de 118 elementos, 94 são metais. Graças à sua estrutura atômica, marcada por uma fraca atração dos elétrons mais externos da camada de valência, os metais apresentam uma tendência de se associarem por meio de ligações iônicas com outros átomos, inclusive não-metais. Essa propriedade também colabora para a sua alta condutividade elétrica e do calor.

Ao longo do tempo, a siderurgia e a indústria em geral foram percebendo que poderiam ampliar enormemente seu potencial caso explorassem essa característica química dos metais. Dependendo do uso, poderia ser melhor associar um metal a outro, formando uma liga que teria dureza, ponto de fusão, maleabilidade e resistência completamente diferentes. Ao se alterar o percentual de carbono adicionado ao ferro, podemos obter um aço que terá uma aplicação completamente diferente caso o demandante seja a indústria automobilística, naval ou aeroespacial – tudo vai depender da composição da liga metálica.

Desde o final da ditadura, a política brasileira se caracteriza por uma infinidade de ligações formadas por dezenas de partidos com características diferentes. Assim como os metais, as legendas brasileiras em geral possuem um núcleo programático que exerce pouco poder de atração sobre seus integrantes, que ficam orbitando ao seu redor, mas com grande liberdade para formar moléculas com elementos de natureza química às vezes bastante distinta.

As coligações partidárias servem muito bem aos interesses dos políticos, reduzindo os custos de campanha, isolando rivais, tornando mais maleáveis propostas de governo e forjando alianças oportunistas entre antigos adversários a depender do contexto local ou nacional e a situação econômica do país.

É verdade que algumas poucas legendas têm o perfil de gases nobres, mantendo-se fiéis à sua composição ideológica original e rejeitando qualquer aproximação com elementos distintos. Os radicais de esquerda PCO, PCB e PSTU tradicionalmente são pouco afeitos a associações, e mais recentemente o Novo surgiu à direita com a mesma vocação de isolamento e baixa reatividade química.

Para os demais elementos da tabela periódica da política brasileira, porém, a tendência é de formação de aglomerados de partidos, com baixa densidade ideológica, forte resistência à tração exercida pelas cobranças sociais e elevada elasticidade de comportamento moral. Em 2002, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tentou impor limites às coligações partidárias, determinando que elas só poderiam ser fabricadas nacionalmente. Em 2006, contudo, o Congresso Nacional aprovou uma Emenda à Constituição liberando as ligações em qualquer âmbito federativo.

Na esteira da Lava Jato e da corrosão da imagem das coalizões partidárias, em 2017 os parlamentares consentiram em barrar as associações entre partidos, mas só para as eleições legislativas representativas. Neste ano teremos, portanto, a primeira eleição neste novo ambiente químico em que as associações estão liberadas para as disputas para prefeito, mas não para vereador.

Os dados preliminares divulgados no final da tarde de ontem (27/09) pelo TSE indicam que o número de candidatos a prefeito no país subiu apenas 10,9% –o que indica que as coligações se mantêm muito resistentes, apesar da nova regra.

Com relação à composição dessas chapas, a diluição ideológica continua altíssima. Só para se ter uma ideia, PT e PSL, os grandes rivais da última eleição nacional, serão aliados em 462 municípios neste pleito, enquanto tucanos farão parceria com petistas em 830 cidades brasileiras.

Reunião de líderes de partidos na Câmara dos Deputados em 11/03/2020. Foto: Luís Macedo/Câmara dos Deputados.
Reunião de líderes de partidos na Câmara dos Deputados em 11/03/2020. Foto: Luís Macedo/Câmara dos Deputados.

33 legendas disputam pelo menos uma prefeitura nas eleições deste ano.

Partidos políticos no Brasil não costumam ter muita identidade ideológica; para a maioria deles, portanto, pouca diferença faz se os tratamos pelas siglas ou pelos nomes. De toda forma, pelo menos como curiosidade, seguem as principais alterações em relação ao último pleito municipal.

De um lado há a moda de tentar modernizar imagem dos partidos por meio da troca de suas antigas siglas por nomes mais simpáticos. Nesse movimento, de 2016 para 2020 o PPS virou Cidadania, PRB é Republicanos, o PTN passou a se apresentar como Podemos, o PEN tornou-se Patriota, o PT do B responde como Avante, o PP chama-se agora Progressistas e o PSDC aparecerá na urna como Democracia Cristã. Houve também duas mudanças de siglas: o PMDB perdeu o “P” de partido e o PR virou PL (não, o Cebolinha não se filiou a essa legenda).

Por fim, como desde 2018 a Constituição exige que as legendas tenham um desempenho mínimo nas urnas para fazer jus às benesses da legislação eleitoral, houve uma tímida redução de concorrentes neste ano. Com a imposição da cláusula de barreira o Patriota deglutiu o PRP, o PHS foi incorporado ao Podemos e o PPL fundiu-se com o PC do B.

Esse resultado, porém, teria sido muito mais forte se a legislação também tivesse condicionado a distribuição do bilionário fundão eleitoral à cláusula de desempenho. Como não o fez, muitos partidos nanicos consideram que vale a pena financeiramente continuar existindo em carreira solo. Neste ano haverá, inclusive, a estreia de mais um: o Unidade Popular (UP) disputa sua primeira eleição com candidatos a prefeito em 29 municípios brasileiros.